domingo, 24 de novembro de 2019

Terceiro sonho

Já havia amanhecido e eu, na minha ânsia de não levantar antes das 10h, fechei meus olhos e tentei me lembrar com o que havia sonhado na noite anterior. Foi assim: eu estava sem grana e um amigo me convidara a morar com ele nesta instalação que um artista holandês tinha criado. Era uma referência às escolhas que fazemos e suas consequências. Se eu quisesse ganhar uma grana era só ajudar a limpar o local todos os dias e a receber as visitas. "Não se esquece de pedir para assinarem no livro ata o nome e a data da visita, ok?"O local era deslumbrante, próximo ao centro da cidade, sem telhado, com pátios enormes e passarinhos por todo lado. Eu não tinha muita coisa, apenas uma cama, uma mesa e uma cadeira. Aos poucos, fui me preparando para o momento. Eu não sabia qual era, quando aconteceria ou como, mas sabia que devia me preparar. O dia amanheceu lindo, ceu azul, um vento gostoso que juntava todas as folhas secas num canto do pátio só para depois as espalhar de novo. O dia havia chegado. Andei em todos os corredores, retirei todas pedras, folhas e penas que encontrei. Acordei meu amigo, contei sobre aquela sensação de que algo iria mudar minha vida. Corri para meu quarto, troquei de roupa, procurei meus óculos, mas não achei. Gritei para o meu amigo se ele os havia visto. Mal fechei a boca, meu celular tocou. Atendi com as mãos meio trêmulas e a voz embargou só para eu ouvir minha mãe do outro lado da linha me pedindo para ir vê-la urgente. Seria isso? Peguei a chave do carro, saí pela entrada dos funcionários, que quase nunca usava, mas estava mais próxima, e fui encontrá-la. Ela tinha convidado a filha de sua amiga para tomar café e quis que  eu estivesse presente para conhecê-la. Conversamos sem nos entendermos, eu estava distraído querendo ir embora. Do momento em que saí de casa eu quis voltar. Convenci como pude a minha mãe de que não poderia me demorar, mas em vão. Quando cheguei, pela cara do meu amigo, eu soube. Eu tinha perdido a chance da minha vida. "Ela se foi, mano. Ela me pediu para te dizer que seus óculos estão no chão, perto da cama, que era assim que vocês iriam se reconhecer nesta vida e que ela não entendia, era para você estar aqui, era hoje o dia em que vocês se veriam e seguiriam juntos", me disse ele, quase com pena. Quis saber que horas ela tinha vindo, como ela era, o que ela fizera, "você saiu por aquela porta e ela entrou por esse corredor com a irmã dela". Eu a perdi.

Segundo sonho

Acordo do Primeiro Sonho apaixonada. Volto a dormir depois de ir beber água. As cobertas ainda estão quentes. Foi assim: percebi que havia se levantado há algum tempo e que não tinha retornado para cama. Sua ausência foi se tornando maior à medida em que as cobertas foram esfriando. Passei a mão no travesseiro ao lado. Acordei sobressaltada e me levantei. A luz da cozinha estava acessa. Ela bebia água e, ao me ver, sorriu, o que a fez cuspir um pouco de água na bancada. Aquilo era amor. Ela me falou de uns pesadelos e da sede que sentia. Fiquei com sede apenas de ouvir o barulho do filtro. Peguei outro copo, me encostei na geladeira e olhei para as pernas, calcinha e bunda dela. Seus cabelos estavam soltos, ondulados sobre os ombros. Quis tocá-la, mas não soube como. Ela se virou, me chamou de tarado e sorriu. Eu estava completamente acordada, pronta para o dia. Ela me beijou e voltamos para cama. "Isso é amor", pensei.

Primeiro sonho

Foi assim: era ainda cedo, estávamos na parati cinza meu pai, eu, meu irmão e minhas irmãs. Passeávamos sem destino, música na rádio, todos cantando. Paramos para pedir informações. Minha irmã mais nova foi à farmácia do outro lado da pista, meu pai e meu irmão se sentaram em bancos de concreto, numa praça com árvores e eu e minha outra irmã fomos andar. Lembro de olhar para trás, gritar "estamos logo ali! Não nos esqueçam!", meu pai tira os olhos do mapa e sorri. Sei que estamos bem, que chegaremos ao nosso destino. Quando me dou conta, estou logo atrás da minha irmã, entrando por um corredor estreito, olho para cima e vejo o ceu azul. O corredor dá para um pátio com várias portas para outros corredores e outros pátios e outras portas. Descrevo melhor: as paredes eram feitas de tijolinhos marrons, sem telhado algum, mesmo nos cômodos sem portas ou janelas, apenas os espaços vazios. Não havia pichações, não estava sujo, velho ou mofado, muito pelo contrário, estava varrido, sem folhas, apesar das árvoes do parque, e tudo cheirava a barro molhado. Era lindo. Enquanto caminhava, deixei meus dedos tocarem as paredes úmidas. A cada esquina, havia um cômodo vazio, vários outros corredores ou um pátio com bancos, fontes de concreto ou árvores. A cada esquina um deslumbramento. Minha irmã logo puxou assunto com um rapaz alto, barbudo e forte que também andava por lá. Ao contrário da gente, ele sabia onde estava, mesmo naquele labirinto. Ele se apresentou e começou a mostrar o lugar com um certo orgulho de proprietário. Era ele que mantinha o lugar impecável. Minha irmã e ele começaram a trocar olhares, sorrisos e eu saí de perto à tempo de entrar num cômodo que julguei estar vazio, mas não estava. Tinha uma cama de casal com uma coberta jogada, uma escrivaninha com vários livros, um guarda-roupa entreaberto e um tapete. Olhei com atenção todas aquelas coisas, no chão, sobre o tapete, entre a cama e o guarda-roupa, uns óculos pretos estavam sobre revistas, peguei-os no intuito de colocar sobre a mesa, senão o dono poderia pisar neles. Ao colocá-los na mesa, reparei numa foto de vários jovens e adultos, colada no espelho. "Quem será você nesta fotografia?", olhei rosto por rosto até encontrar o par de óculos. Ele era absolutamente lindo. Ouvi a voz da minha irmã chamando e saí do quarto. O rapaz me disse que ali dormia seu colega, mas que ele tinha saído num assunto urgente. Ele me disse o nome dele, mas não me lembro. Do que eu me lembro, entretanto, é de dizer que aquele rapaz era o homem da minha, pelo qual eu esperei todo aquele tempo, que seu amigo deveria dizer a ele que eu estava lá, que eu tinha chegado para que pudéssemos nos encontrar e que eu jamais poderia me esquecer os óculos de armação preta sobre as revistas no chão, que eu já tinha visto a fotografia, porque era assim que nos reconheceríamos nesta vida. Ouvimos nosso pai chamar do lado de fora e fomos até ele. Fim.

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Me torno algo sem nome, mas não mais sozinha

Guardo essa energia com medo de gastá-la em vão, como acontecera tantas outras vezes. Queimo com toda a minha força essa chama que me reduz a cinzas. Vi, com um leve susto, o rato correndo em frente ao café que agora frequento. Um sorriso e um pensamento, "logo, logo, estará ele esmagado a estraçalhar meu sentimento de mãe de Deus". Talvez Bruno entendesse e sorrisse também, se ele estivesse ali, mas já tinha ido embora. Há meses não o vejo com aqueles olhos tietantes. Ficaram tristes os meus olhos. Me permito sentir a dor, ser consumida, orando para que sobrem meu sorriso e minhas mãos ao passar para o outro lado das chamas. Eu não vou mais voltar, mesmo sem saber ao certo o que isto quer dizer. Noite passada realizei um sonho antigo com pessoas que sempre amei. Na casa da Luisa, ela, Marquinho e eu conversamos até nascer o sol. Percebi os primeiros raios quando o Téo, o cachorro, esticou suas patinhas marrons e abriu seus olhos brancos de cegueira. Conversamos sobre a necessidade de amar e, principalmente, de aceitar o amor do outro, sobre músicas boas e ruins, sobre os desdobramentos da vida e como jamais pensei que seria essa a minha tragetória, mesmo sendo tão óbvia. Marquinho tocou seu violão, me ensinou algumas notas e se tornou um amigo querido. Luisa conversava em espanhol e em inglês com seu amado Noah. Eu agradeci cada segundo com eles, recitei minhas poesias favoritas e fui fazer um café. Bebi sedentamente de cada palavra, cada olhar, cada sorriso, porque só existe o agora e consegui ver que naquele agora eu estava completamente feliz. Não era um completamente feliz superficial, que dizem todas as gentes na semana do pagamento ou na véspera de Natal, em que passados alguns instantes já se teriam esquecido do sentimento de infinito. Era um completamente feliz de saber receber o amor e, mesmo meio sem jeito, sem saber o que fazer com tudo aquilo, de costurá-lo cuidadosamente à minha pele, à minha alma. Antes eu olhava do fundo do poço de mim, dos corredores infinitos de meu labirinto, de braços estendidos, pedindo salvação, sozinha, sem ver as mãos estendidas ao redor. Hoje, começo percebo, lentamente, a presença de meus amigos, antigos amores que souberam ficar, familiares e conhecidos. Esta presença que som alegria aos meus dias, que me fazem repensar quem sou e o que sonho. Estou voltando a sonhar! Um amigo me diz "mas amigos também falham!", eu entendo o alerta para eu não colocar a expectativa da minha felicidade neles. Eu entendo e aceito. Tomarei cuidado para não projetar, para não obrigar, para não matar afogados os sentimentos com excesso de cuidado. Pulsa o desejo de ser mãe. Estou à procura de alguém que enfrente essa longa jornada ao meu lado. Jornada que durará o resto de minha vida e mais, muito mais.

terça-feira, 5 de novembro de 2019

A Livraria e meu presente de aniversário

O papo estava bom, tranquilo como sempre é ao lado de Luisa. De repente ela me confessa algo já tão ingênuo que preciso ver com meus próprios olhos. Luisa está apaixonada por um livreiro de um sebo em sua quadra. Quero vê-lo, medir-lhe a altura e tamanho dos sonhos, escutar-lhe a voz, o que me dirá os olhos e mãos. Caminhamos lado a lado, como convém caminhar com uma amiga, olhamos árvores, lojas, carros, a vida que nos rodeia. Ela me pergunta o que ando lendo nesses últimos tempos e lhe digo que nada muito especial que deva ser seguido, mas Mulheres que Correm com os Lobos é sempre uma obra de auto-revelação e que Saramago deve ser provado aos poucos, num desejo obtuso de conhecer o profundo do mundo. Chegamos à porta do sebo minutos antes de fechar. Em frente à porta, dezenas de livros ofertados por dois reais. Escolho um pelo título, "De Bar em Bar", pela imagem da capa e por ser velho, ter cheiro de velho e páginas amareladas. Puro prazer. Ela segura em minha mão enquanto vamos santuário à dentro. Várias prateleiras empilhando livros e mais livros, divididas por gêneros, em corredores estreitos, com caixas espalhadas pelo chão. Um caos. Ao fundo de tudo isso, um rapaz alto, de cabelos castanhos escuros e pouca barba nos mede desde antes da porta e sorri. Perguntamos sobre Clarice e ele começa a conversar. Olho em volta e me lembro de outra livraria maior do que esta, na asa sul, onde vi o Amor desabrochar diante de mim e de onde fui embora de olhos fechados. Rapaz gentil, nos trouxe os exemplares que tinha, falou da procura insana por Clarice nesse último mês, "hoje e sempre", retruquei sem me dar conta. Eu falava mais comigo do que com as duas outras pessoas no recinto. Tantos livros, tantos sonhos maravilhosos, histórias, viagens, dores, amores... Eu, abraçada com meu livro, não conseguia pensar em nada para ajudar Luisa a manter a conversa, embasbacada que sempre fico em livrarias intimistas como aquela. Ela me pagou o livro e me prometeu uma dedicatória. Fomos embora. Duas adolescentes ao encontro do amor, ou seu resquício, pelo menos. Luisa ficou feliz, disse-lhe todas as minhas impressões, compartilhamos o que tínhamos acabado de vivenciar, e pareceu dois universos diferentes. Luisa, em sua agonia de não saber o que ser para interessar o jovem livreiro, conversando sobre Clarice e suas tiragens, numa expectativa crua por um sorriso, um telefone, um convite para um café, e eu, querendo todos aqueles livros, segurando com todo o cuidado e amor um livro, cujo único benefício era o título. Pelo caminho, folheei suas últimas páginas e descobri, com imensa surpresa, que a personagem principal era a mesma de meu livro favorito. Numa outra encarnação, pelo menos, Theresa e Tomas foram irmãos, não compartilharam muito da vida juntos, já que ele morrera na Guerra do Vietnã, e ela adoecera ainda criança. O laço que os uniu permanece. Em quantos outros livros, eles caminham juntos um pedaço do caminho? Luisa me dedicou dizendo "você me faz lembrar da luz que existe em mim". Eu te digo o mesmo. Existe música em mim hoje, graças a você.

Guarde um beijo pra mim...

Foi com um susto que ela acordou de madrugada. Uma lágrima escorria enquanto ela tentava distinguir entre realidade e sonho, preferindo o sonho. Nele, alguma coisa de muito ruim acontecia e ela, aos prantos, tentava se explicar. Foi nessa hora, com uma dor insuportável no peito, que ela acordou. Uma palavra ressoava longe nos seus ouvidos. Estava difícil dizer se ainda estava lá ou livre. Livre onde? Se seu quarto estava escuro, sua cama meio vazia. Sorriu. Sua psicóloga lhe diria da incógnita do copo. Os olhos agora viam, sem aquela penugem dos que voltam de suas mentes, que a luz da janela era rosa. Deve ser bem de madrugada, pensou, não vou nem olhar as horas para não acabar com a magia. Sentada, com as pernas esticadas, ela enxugou com surpresa, as lágrimas que ainda caíam. Devia estar sofrendo muito no sonho. O que me disseram para eu ter desejado fugir para o mundo real? Aqui está melhor do que lá, com certeza. Ela passou a mão pelos lençois. Frios, constatou. Só agora percebera que respirava pouco. Suspirou profundamente. Percebeu que ia pensar nele e, imediatamente, se levantou, cantarolou Belchior e foi beber água. As pernas falharam, no começo, o que a fez lembrar de quando levantava da cama para buscar água depois do amor. Ele ficava na cama, deitado com as mãos sob a cabeça. Tudo em sua casa lhe parecia estranho, vindo de um outro lugar mais distante e antigo. Em alguma janela, uma brecha deixava assobiar o vento, mas ela não sabia qual. Nessa atmosfera rósea, fria e solitária, ela se sentou à mesa, enquanto bebia lentamente seu copo d'água, e deixou que mais uma ou catorze lágrimas escorressem. Se sentia falta dele? Era óbvio que sim, mas o que poderia fazer para convencer o amor de sua vida que ela valia a pena? Se ele precisava ser convencido, então, nada daquilo valia a pena. Seus pensamentos vagavam entre sonho e realidade, entre suspiros, ela decidira chamar essa nova fase de liberdade, ao invés de solidão. Quis sorrir, mas estava sonolenta demais para conseguir. Encostou a cabeça sobre a mesa, numa blusa de frio ali esquecida há semanas e só acordou quando seu celular despertou às 6h10 da manhã. Dolorida, ao abrir os olhos, escutou com clareza a palavra que lhe assombrara na noite anterior: Mountak.