sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Tem sido um ano longo, muito longo, para tão poucas alegrias e comoções, mas quando essas acontecem, meu Deus!, como ficam felizes os meus olhos e como é fácil sorrir novamente... Há tempos não digo nada que cause prazer ou dor, caro amigo, e mesmo assim, sinto como se tudo estivesse exposto com notas explicativas no mural do meu velho coração. Engraçado, tenho olhos cansados e um coração velho, o que mais posso querer? É mesmo, me faltam mãos trêmulas para que o que for pesado no chão caia e nunca mais volte a ocupar o espaço oco das mãos.
Não espere que dos meus olhos tropecem lágrimas desordeiras e embriagadas de dor. O ano chega ao seu fim, mas meu peito de pedra que nada sente e nada ama não se permite se desprender de seu musgo, tão caro e raro. Mas o outro, o que morre e chora, tem nome, Madeleine Wallace, e sussurra, hoje, melodias fúnebres e fados desengranhados. Meu peito duro nada sabe da certeza aguda que me aponta nos rins e sobe, sobe, até a boca de que serei feliz, um dia; de que realizarei milhões de pequeninos sonhos outra vez. E só.
Não me explicaram o que buscar depois da felicidade, você sabe? Temo haver um abismo, como nas piores previsões de Colombo, entre mim e a Terra Prometida, pois pode haver monstros devoradores de almas e dragões que cospem diamantes. E o que será de mim, sozinha novamente?
A insônia se senta ao meu lado na cama, tento ignorá-la, mas as coisas que, de madrugada, segreda me fazem pensar se não seria melhor entrar em coma ou dormir de uma vez por todas, pois são terríveis os amores fracassados e os corações partidos em mil...
Espero do ano que vem que eu viva de doces mentiras...

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Heloisa Medeiros, de Graciliano Ramos

Heloisa
chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria!, muito antiga, muito devota, dessas que deitam água-benta na tinta.
Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta assim: 'Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc.' Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de passar horas da noite acordado, sonhando coisas absurdas? Não sabes. Pois eu te conto.
Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em conservar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão da Nossa Senhora do Amparo... E depois o jogo dos disparates, exelente jogo. 'Iaiá caiu no poço'. Ora o poço! Quem caiu no poço fui eu.
Principio uma carta que deveria ter sido escrita há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem conta, olhando um livro aberto, que não leio. Dança-me na cabeça uma chusma de ideias desencontradas. Entre elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a uem eu disse aqui em casa, depois da prisão o vigário, nem sei ue tolices.
Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas?
Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão vejo indistintamente essa mancha que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei nauele dia.
Por que me quiseste? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em vinte e quatro horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causaquando te vi pela primeira vez.
É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.
Fui visitar o padre Macedo. Falou-me de ti, mas o que disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia de teu aniversário e me deram teu endereço.
Tinhas razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer.
É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as portas da tua alma.
Beijo-te as mãos, meu amor.
Recomendo-me aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser minha sogra, diz a ela. Acho-a boa demais para sogra.
Amo-te muito. Espero que venhas a gostar de mim um pouco. Teu Graciliano. Palmeira, 16 de janeiro de 1928.