sábado, 30 de abril de 2011

Grace Kelly, Mika


Composição : Mika / Jodi Marr / John Merchant / Dan Warner

I wanna talk to you.

(The last time we talked, Mr. Smith, you reduced me to tears.
I promise you, it won't happen again.)

Do I attract you?
Do I repulse you with my queasy smile?
Am I too dirty?
Am I too flirty?
Do I like what you like?

I could be wholesome
I could be loathsome
Yes, I'm a little bit shy
Why don't you like me?
Why don't you like me without making me try?


I tried to be like Grace Kelly
But all her looks were too sad

So I tried a little Freddie
I've gone identity mad!

I could be brown
I could be blue
I could be violet sky
I could be hurtful
I could be purple
I could be anything you like
Gotta be green
Gotta be mean
Gotta be everything more
Why don't you like me?
Why don't you like me?
Why don't you walk out the door!

(Getting angry doesn't solve anything)

How can I help
How can I help it
How can I help what you think?
Hello my baby
Hello my baby
Putting my life on the brink
Why don't you like me
Why don't you like me
Why don't you like yourself?
Should I bend over?
Should I look older just to be put on your shelf?


Say what you want to satisfy yourself
But you only want what everybody else says you should want...
You want...


(Humphrey, we're leaving.)

Kachinga!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Os Desastres de Sofia, de Clarice Lispector


Os desastres de Sofia – Clarice Lispector
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de pro­fissão, e passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele. O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele. Não amor, mas atraída pelo seu silêncio e pela controlada impaciência que ele tinha em nos ensinar e que, ofendida, eu adivinhara. Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, inter­rompia a lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
— Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto, com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos. Ele me irritava. De noite, antes de dormir, ele me irritava.
Eu tinha nove anos e pouco, dura idade como o talo não quebrado de uma begônia. Eu o espicaçava, e ao conseguir exacerbá-lo sentia na boca, em glória de martírio, a acidez insuportá­vel da begônia quando ê esmagada entre os dentes; e roia as unhas, exultante. De manhã, ao atravessar os portões da escola, pura como ia com meu café com leite e a cara lavada, era um choque deparar em carne e osso com o homem que me fizera devanear por um abismal minuto antes de dormir. Em superfície de tempo fora um minuto apenas, mas em profundidade eram velhos séculos de escuríssima doçura. De manhã — como se eu não tivesse contado com a exis­tência real daquele que desencadeara meus negros sonhos de amor — de manhã, diante do homem grande com seu paletó curto, em choque eu era jogada na vergonha, na perplexidade e na assustadora esperança. A esperança era o meu pecado maior.
Cada dia renovava-se a mesquinha luta que eu encetara pela salvação daquele homem. Eu queria o seu bem, e em resposta ele me odiava. Contundida, eu me tornara o seu demônio e tormento, símbolo do inferno que devia ser para ele ensinar aquela turma risonha de desin­te­ressa­­dos. Tornara-se um prazer já terrível o de não deixá-lo em paz. O jogo, como sem­pre, me fascinava. Sem saber que eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os ruins já nascem — aqueles ruins que roem as unhas de espanto —, sem saber que obede­cia a uma das coisas que mais acontecem no mundo, eu estava sendo a prostituta e ele o santo. Não, talvez não seja isso. As palavras me antecedem e ultrapassam, elas me tentam e me modi­ficam, e se não tomo cuidado será tarde demais: as coisas serão ditas sem eu as ter dito. Ou, pelo menos, não era apenas isso. Meu enleio vem de que um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias. E nem todas posso contar — uma palavra mais verdadeira poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas geleiras.
Assim, pois, não falarei mais no sorvedouro que havia em mim enquanto eu devaneava antes de adormecer. Senão eu mesma terminarei pensando que era apenas essa macia voragem o que me impelia para ele, esquecendo minha desesperada abnegação. Eu me tornara a sua sedutora, dever que ninguém me impusera. Era de se lamentar que tivesse caído em minhas mãos erradas a tarefa de salvá-lo pela tentação, pois de todos os adultos e crianças daquele tempo eu era provavelmente a menos indicada. “Essa não é flor que se cheire”, como dizia nossa empregada. Mas era como se, sozinha com um alpinista paralisado pelo terror do precipício, eu, por mais inábil que fosse, não pudesse senão tentar ajudá-lo a descer.
O professor tivera a falta de sorte de ter sido logo a mais imprudente quem ficara sozinha com ele nos seus ermos. Por mais arriscado que fosse o meu lado, eu era obrigada a arrastá-lo para o meu lado, pois o dele era mortal. Era o que eu fazia, como uma criança importuna puxa um grande pela aba do paletó. Ele não olhava para trás, não perguntava o que eu queria, e livrava-se de mim com um safanão. Eu continuava a puxá-lo pelo paletó, meu único instrumento era a insistência. E disso tudo ele só percebia que eu lhe rasgava os bolsos. É verdade que nem eu mesma sabia ao certo o que fazia, minha vida com o professor era invisível. Mas eu sentia que meu papel era ruim e perigoso: impelia-me a voracidade por uma vida, vida real que tardava, e pior que inábil, eu também tinha gosto em lhe rasgar os bolsos. Só Deus perdoaria o que eu era porque só Ele sabia do que me fizera e para o quê. Eu me deixava, pois, ser matéria d’Ele. Ser matéria de Deus era a minha única bondade. E a fonte de um nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela matéria d’Ele, mas pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora. Aceitava a vastidão do que eu não conhecia e a ela me confiava toda, com segredos de confessionário. Seria para as escuridões da ignorância que eu seduzia o professor? e com o ardor de uma freira na cela. Freira alegre e monstruosa, ai de mim. E nem disso eu poderia me vangloriar: na classe todos nós éramos igualmente monstruosos e suaves, ávida matéria de Deus.
Mas se me comoviam seus gordos ombros contraídos e seu paletozinho apertado, minhas gargalhadas só conseguiam fazer com que ele, fingindo a que custo me esquecer, mais contraído ficasse de tanto autocontrole. A antipatia que esse homem sentia por mim era tão forte que eu me detestava. Até que meus risos foram definitivamente substituindo minha delicadeza impossível.
Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já me tomara demais. Suportando com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios, humilhada por não ser uma flor, e sobretudo torturada por uma infância enorme que eu temia nunca chegar a um fim — mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a minha única riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta do futuro eu já exercitava sacudindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação sempre bem sucedida e que também ela o professor tomava como mais uma provocação da menina odiosa. Nisso ele não tinha razão. A verdade é que não me sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia os livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristeza, refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era o meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir.
Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas — na minha pressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato da época me revelar, ao contrário, uma menina bem plantada, selvagem e suave, com olhos pensativos embaixo da franja pesada, esse retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me fundamentalmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar — tomava intuitivo cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância.
Foi pena o professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me tornaria: aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perce­ber que eu já não era mais um moleque e sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. “Que é?”, indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida.
Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo de outras. Ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no parque.
— Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as pala­vras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.
O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando muito rico.
Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem olhar uma só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmo resultado: com perturbação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-me que ele obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.
Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde as abe­lhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, intensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os troncos havíamos a canivete gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas ali faziam o seu mel.
Eu estava no fim da composição e o cheiro das sombras escondidas já me chamava. Apressei-me. Como eu só sabia “usar minhas próprias palavras”, escrever era simples. Apres­sava-me também o desejo de ser a primeira a atravessar a sala — o professor terminara por me isolar em quarentena na última carteira — e entregar-lhe insolente a composição, demonstran­do-lhe assim minha rapidez, qualidade que me parecia essencial para se viver e que, eu tinha certeza, o professor só podia admirar.
Entreguei-lhe o caderno e ele o recebeu sem ao menos me olhar. Melindrada, sem um elogio pela minha velocidade, saí pulando para o grande parque.
A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele contara. Só que naquela época eu estava começando a “tirar a moral das histórias”, o que, se me santifi­cava, mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez. Com alguma faceirice, pois, havia acrescen­tado as frases finais. Frases que horas depois eu lia e relia para ver o que nelas haveria de tão poderoso a ponto de enfim ter provocado o homem de um modo como eu própria não conse­guira até então. Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros. Já não me lembro, não sei se foi exatamente isso. Não consigo imaginar com que palavras de criança teria eu exposto um sentimento simples mas que se torna pensamento complicado.
Suponho que, arbi­trariamente contrariando o sentido real da história, eu de algum modo já me prometia por escrito que o ócio, mais que o trabalho, me daria as grandes recompensas gratuitas, as únicas a que eu aspirava. É possível também que já então meu tema de vida fosse a irrazoável esperança, e que eu já tivesse iniciado a minha grande obstinação: eu daria tudo o que era meu por nada, mas queria que tudo me fosse dado por nada. Ao contrário do trabalhador da história, na composição eu sacudia dos ombros todos os deveres e dela saía livre e pobre, e com um tesouro na mão.
Fui para o recreio, onde fiquei sozinha com o prêmio inútil de ter sido a primeira, cis­cando a terra, esperando impaciente pelos meninos que pouco a pouco começaram a surgir da sala.
No meio das violentas brincadeiras resolvi buscar na minha carteira não me lembro o quê, para mostrar ao caseiro do parque, meu amigo e protetor. Toda molhada de suor, vermelha de uma felicidade irrepresável que se fosse em casa me valeria uns tapas — voei em direção à sala de aula, atravessei-a correndo, e tão estabanada que não vi o professor a folhear os cadernos empilhados sobre a mesa. Já tendo na mão a coisa que eu fora buscar, e iniciando outra corrida de volta — só então meu olhar tropeçou no homem.
Sozinho à cátedra: ele me olhava.
Era a primeira vez que estávamos frente a frente, por nossa conta. Ele me olhava. Meus passos, de vagarosos, quase cessaram.
Pela primeira vez eu estava só com ele, sem o apoio cochichado da classe, sem a admiração que minha afoiteza provocava. Tentei sorrir, sentindo que o sangue me sumia do rosto. Uma gota de suor correu-me pela testa. Ele me olhava. O olhar era uma pata macia e pesada sobre mim. Mas se a pata era suave, tolhia-me toda como a de um gato que sem pressa prende o rabo do rato. A gota de suor foi descendo pelo nariz e pela boca, dividindo ao meio o meu sorriso. Apenas isso: sem uma expressão no olhar, ele me olhava. Comecei a costear a parede de olhos baixos, prendendo-me toda a meu sorriso, único traço de um rosto que já perdera os contornos.
Nunca havia percebido como era comprida a sala de aula; só agora, ao lento passo do medo, eu via o seu tamanho real. Nem a minha falta de tempo me deixara perceber até então como eram austeras e altas as paredes; e duras, eu sentia a parede dura na palma da mão. Num pesadelo, do qual sorrir fazia parte, eu mal acreditava poder alcançar o âmbito da porta — de onde eu correria, ah como correria! a me refugiar no meio de meus iguais, as crianças. Além de me concentrar no sorriso, meu zelo minucioso era o de não fazer barulho com os pés, e assim eu aderia à natureza íntima de um perigo do qual tudo o mais eu desco­nhecia. Foi num arrepio que me adivinhei de repente como num espelho: uma coisa úmida se encostando à parede, avançando devagar na ponta dos pés, e com um sorriso cada vez mais intenso. Meu sorriso cristalizara a sala em silêncio, e mesmo os ruídos que vinham do parque escorriam pelo lado de fora do silêncio. Cheguei finalmente à porta, e o coração imprudente pôs-se a bater alto demais sob o risco de acordar o gigantesco mundo que dormia.
Foi quando ouvi meu nome.
De súbito pregada ao chão, com a boca seca, ali fiquei de costas para ele sem coragem de me voltar. A brisa que vinha pela porta acabou de secar o suor do corpo. Virei-me devagar, contendo dentro dos punhos cerrados o impulso de correr.
Ao som de meu nome a sala se desipnotizara.
E bem devagar vi o professor todo inteiro. Bem devagar vi que o professor era muito grande e muito feio, e que ele era o homem de minha vida. O novo e grande medo. Pequena, sonâmbula, sozinha, diante daquilo a que a minha fatal liberdade finalmente me levara. Meu sorriso, tudo o que sobrara de um rosto, também se apagara. Eu era dois pés endurecidos no chão e um coração que de tão vazio parecia morrer de sede. Ali fiquei, fora do alcance do homem. Meu coração morria de sede, sim: Meu coração morria de sede.
Calmo como antes de friamente matar ele disse:
— Chegue mais perto . . .
Como é que um homem se vingava?
Eu ia receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte de compacta tristeza, era também monte de fúria? Mas meu passado era agora tarde demais. Um arrependimento estóico manteve erecta a minha cabeça. Pela primeira vez a ignorância, que até então fora o meu grande guia, desamparava-me. Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses. Eu era o único eu.
— … Pegue o seu caderno …, acrescentou ele.
A surpresa me fez subitamente olhá-lo. Era só isso, então!? O alívio inesperado foi quase mais chocante que o meu susto anterior. Avancei um passo, estendi a mão gaguejante.
Mas o professor ficou imóvel e não entregou o caderno.
Para a minha súbita tortura, sem me desfitar, foi tirando lentamente os óculos. E olhou-me com olhos nus que tinham muitos cílios. Eu nunca tinha visto seus olhos que, com as inúme­ras pestanas, pareciam duas baratas doces. Ele me olhava. E eu não soube como existir na frente de um homem. Disfarcei olhando o teto, o chão, as paredes, e mantinha a mão ainda estendida porque não sabia como recolhê-la. Ele me olhava manso, curioso, com os olhos despenteados como se tivesse acordado. Iria ele me amassar com mão inesperada? Ou exigir que eu me ajoelhasse e pedisse perdão. Meu fio de esperança era que ele não soubesse o que eu lhe tinha feito, assim como eu mesma já não sabia, na verdade eu nunca soubera.
— Como é que lhe veio a idéia do tesouro que se disfarça?
— Que tesouro? — murmurei atoleimada.
Ficamos nos fitando em silêncio.
— Ah, o tesouro!, precipitei-me de repente mesmo sem entender, ansiosa por admitir qualquer falta, implorando-lhe que meu castigo consistisse apenas em sofrer para sempre de culpa, que a tortura eterna fosse a minha punição, mas nunca essa vida desconhecida.
— O tesouro que está escondido onde menos se espera. Que é só descobrir. Quem lhe disse isso?
O homem enlouqueceu, pensei, pois que tinha a ver o tesouro com aquilo tudo? Atônita, sem compreender, e caminhando de inesperado a inesperado, pressenti no entanto um terreno menos perigoso. Nas minhas corridas eu aprendera a me levantar das quedas mesmo quando mancava, e me refiz logo: “foi a composição do tesouro! esse então deve ter sido o meu erro!” Fraca, e embora pisando cuidadosa na nova e escorregadia segurança, eu no entanto já me levantara o bastante da minha queda para poder sacudir, numa imitação da antiga arrogância, a futura cabeleira ondulada:
— Ninguém, ora …, respondi mancando. Eu mesma inventei, disse trêmula, mas já recomeçando a cintilar.
Se eu ficara aliviada por ter alguma coisa enfim concreta com que lidar, começava no entanto a me dar conta de algo muito pior. A súbita falta de raiva nele. Olhei-o intrigada, de viés. E aos poucos desconfiadíssima. Sua falta de raiva começara a me amedrontar, tinha ameaças novas que eu não compreendia. Aquele olhar que não me desfitava — e sem cólera … Perplexa, e a troco de nada, eu perdia o meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida. Que é que ele queria de mim? Ele me constrangia. E seu olhar sem raiva passara a me importunar mais do que a brutalidade que eu temera. Um medo pequeno, todo frio e suado, foi me tomando. Devagar, para ele não perceber, recuei as costas até encontrar atrás delas a parede, e depois a cabeça recuou até não ter mais para onde ir. Daquela parede onde eu me engastara toda, furtivamente olhei-o.
E meu estômago se encheu de uma água de náusea. Não sei contar.
Eu era uma menina muito curiosa e, para a minha palidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora até hoje não saiba ao certo o que vi. Mas sei que vi. Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos.
Vi uma coisa se fazendo na sua cara — o mal-estar já petrificado subia com esforço até a sua pele, vi a careta vagarosamente hesitando e quebrando uma crosta — mas essa coisa que em muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se parecia tão pouco com um sorriso como se um fígado ou um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel.
Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, e em vitória infantil ele mostrou, pérola arrancada da barriga aberta — que estava sorrindo. Eu vi um homem com entranhas sorrindo. Via sua apreensão extrema em não errar, sua aplicação de aluno lento, a falta de jeito como se de súbito ele se tivesse tornado canhoto. Sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu peso de homem.
Minhas costas forçaram desesperadamente a parede, recuei — era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo … Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estôma­go. Estavam pedindo demais de minha coragem só porque eu era corajosa, pediam minha força só porque eu era forte. “Mas e eu?”, gritei dez anos depois por motivos de amor perdido, “quem virá jamais à minha fraqueza!” Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos.
Então ele disse, usando pela primeira vez o sorriso que aprendera:
— Sua composição do tesouro está tão bonita. O tesouro que é só descobrir. Você … — ele nada acrescentou por um momento. Perscrutou-me suave, indiscreto, tão meu íntimo como se ele fosse o meu coração. — Você é uma menina muito engraçada, disse afinal.
Foi a primeira vergonha real de minha vida. Abaixei os olhos, sem poder sustentar o olhar indefeso daquele homem a quem eu enganara.
Sim, minha impressão era a de que, apesar de sua raiva, ele de algum modo havia con­fiado em mim, e que então eu o enganara com a lorota do tesouro. Naquele tempo eu pensava que tudo o que se inventa é mentira, e somente a consciência atormentada do pecado me redimia do vício.
Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me atraía. Eu bem quis lhe avisar que não se acha tesouro à toa.
Mas, olhando-o, desanimei: faltava-me a coragem de desiludi-lo. Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, as de meu pai, por exemplo, que era mais desprevenido que eu. Mas como me foi difícil engolir a seco essa alegria que tão irresponsavelmente eu causara! Ele parecia um mendigo que agradecesse o prato de comida sem perceber que lhe haviam dado carne estragada. O sangue me subira ao rosto, agora tão quente que pensei estar com os olhos injetados, enquanto ele, provavelmente em novo engano, devia pensar que eu corara de prazer ao elogio. Naquela mesma noite aquilo tudo se transformaria em incoercível crise de vômitos que manteria acesas todas as luzes de minha casa.
— Você — repetiu então ele lentamente como se aos poucos estivesse admitindo com encantamento o que lhe viera por acaso à boca —, você é uma menina muito engraçada, sabe? Você é uma doidinha …, disse usando outra vez o sorriso como um menino que dorme com os sapatos novos. Ele nem ao menos sabia que ficava feio quando sorria. Confiante, deixava-me ver a sua feiúra, que era a sua parte mais inocente.
Tive que engolir como pude a ofensa que ele me fazia ao acreditar em mim, tive que engolir a piedade por ele, a vergonha por mim, “tolo!”, pudesse eu lhe gritar, “essa história de tesouro disfarçado foi inventada, é coisa só para menina!” Eu tinha muita consciência de ser uma criança, o que explicava todos os meus graves defeitos, e pusera tanta fé em um dia crescer — e aquele homem grande se deixara enganar por uma menina safadinha. Ele matava em mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem, acreditava como eu nas grandes mentiras …
… E de repente, com o coração batendo de desilusão, não suportei um instante mais — sem ter pegado o caderno corri para o parque, a mão na boca como se me tivessem quebrado os dentes. Com a mão na boca, horrorizada, eu corria, corria para nunca parar, a prece profunda não é aquela que pede, a prece mais profunda é a que não pede mais — eu corria, eu corria muito espantada.
Na minha impureza eu havia depositado a esperança de redenção nos adultos. A necessidade de acreditar na minha bondade futura fazia com que eu venerasse os grandes, que eu fizera à minha imagem, mas a uma imagem de mim enfim purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de menina. E tudo isso o professor agora destruía, e destruía meu amor por ele e por mim. Minha salvação seria impossível: aquele homem também era eu. Meu amargo ídolo que caíra ingenuamente nas artimanhas de uma criança confusa e sem candura, e que se deixara docilmente guiar pela minha diabólica inocência … Com a mão apertando a boca, eu corria pela poeira do parque.
Quando enfim me dei conta de estar bem longe da órbita do professor, sofreei exausta a corrida, e quase a cair encostei-me em todo o meu peso no tronco de uma árvore, respirando alto, respirando. Ali fiquei ofegante e de olhos fechados, sentindo na boca o amargo empoeirado do tronco, os dedos mecanicamente passando e repassando pelo duro entalhe de um coração com flecha. E de repente, apertando os olhos fechados, gemi entendendo um pouco mais: estaria ele querendo dizer que … que eu era um tesouro disfarçado? O tesouro onde menos se espera… Oh não, não, coitadinho dele, coitado daquele rei da Criação, de tal modo precisara … de quê? de que precisara ele? … que até eu me transformara em tesouro.
Eu ainda tinha muito mais corrida dentro de mim, forcei a garganta seca a recuperar o fôlego, e empurrando com raiva o tronco da árvore recomecei a correr em direção ao fim do mundo.
Mas ainda não divisara o fim sombreado do parque, e meus passos foram se tornando mais vagarosos, excessivamente cansados. Eu não podia mais. Talvez por cansaço, mas eu su­cumbia. Eram passos cada vez mais lentos e a folhagem das árvores se balançava lenta. Eram passos um pouco deslumbrados. Em hesitação fui parando, as árvores rodavam altas. É que uma doçura toda estranha fatigava meu coração. Intimidada, eu hesitava. Estava sozinha na relva, mal em pé, sem nenhum apoio, a mão no peito cansado como a de uma virgem anunciada. E de cansaço abaixando àquela suavidade primeira uma cabeça finalmente humilde que de muito longe talvez lembrasse a de uma mulher. A copa das árvores se balançava para a frente, para trás. “Você é uma menina muito engraçada, você é uma doidinha”, dissera ele. Era como um amor.
Não, eu não era engraçada. Sem nem ao menos saber, eu era muito séria. Não, eu não era doidinha, a realidade era o meu destino, e era o que em mim doía nos outros. E, por Deus, eu não era um tesouro. Mas se eu antes já havia descoberto em mim todo o ávido veneno com que se nasce e com que se rói a vida — só naquele instante de mel e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria curado quem sofresse de mim. Eu era a escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes alimentando a minha vida inevitá­vel — que podia eu fazer? eu já sabia que eu era inevitável.
Mas se eu não prestava, eu fora tudo o que aquele homem tivera naquele momento. Pelo menos uma vez ele teria que amar, e sem ser a ninguém — através de alguém. E só eu estivera ali. Se bem que esta fosse a sua única vantagem: tendo apenas a mim, e obrigado a iniciar-se amando o ruim, ele começara pelo que poucos chegavam a alcançar. Seria fácil demais querer o limpo; inalcançável pelo amor era o feio, amar o impuro era a nossa mais profunda nostalgia.
Através de mim, a difícil de se amar, ele recebera, com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos feitos. Entendi eu tudo isso? Não. E não sei o que na hora entendi. Mas assim como por um instante no professor eu vira com aterrorizado fascínio o mundo — e mesmo agora ainda não sei o que vi, só que para sempre e em um segundo eu vi — assim eu nos entendi, e nunca saberei o que entendi. Nunca saberei o que eu entendo. O que quer que eu tenha entendido no parque foi, com um choque de doçura, entendido pela minha ignorância. Ignorância que ali em pé — numa solidão sem dor, não menor que a das árvores — eu recuperava inteira, a ignorância e a sua verdade incom­preensível. Ali estava eu, a menina esperta demais, e eis que tudo o que em mim não prestava servia a Deus e aos homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro.
Como uma virgem anunciada, sim.
Por ele me ter permitido que eu o fizesse enfim sorrir, por isso ele me anunciara. Ele acabara de me transformar em mais do que o rei da Criação: fizera de mim a mulher do rei da Criação. Pois logo a mim, tão cheia de garras e sonhos, coubera arrancar de seu coração a flecha farpada. De chofre explicava-se para que eu nascera com mão dura, e para que eu nascera sem nojo da dor.
Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto — uivaram os lobos, e olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e dormir.
… E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. É que os outros fazem outras histórias. Em algumas foi de meu coração que outras garras cheias de duro amor arrancaram a flecha farpada, e sem nojo de meu grito.

Lispector, Clarice. Os desastres de Sofia. In A Legião Estrangeira.
São Paulo, Ática, 1977, p. 11-25

domingo, 24 de abril de 2011

morri mil e uma vezes... As Coisas


A única postagem que não esperava mais encontrar aqui era a sua (com gentilezas). Depois de dias e dias, percebi que talvez fosse vã tanta espectativa (caio no velho erro, já tão manuseado e deformado por minha espera espectadorivante). Um misto de surpresa e alegria e mesmo dor, por que não?, me invadiu, entretanto.Meus cansados olhos acostumados com aquela borboleta rajada de marrom e de preto e de cores além que meu problema de visão nunca permitiu-se ver, de repente sumiu e o que tinha diante de mim era uma cabeça com um enorme ponto de interrogação (parece mesmo com a gente: pobre juventude desperdiçada da vida de Jack...) e um texto. "Quem ousa??!!", "Qual teu nome, covarde borboleteador?" e algumas linhas abaixo, uma bofetada em delicadeza "me chamo André".
Eu sou chamada Agnes. No dicionário de Tlön, significa "aquela que segue com as águas do rio, deixando dentro de si um mar de amores insonhalizáveis (insonháveis + irrealizáveis) sem, no entanto, se misturar rio e mar." (p. 12290, vol. VI). Tb tenho vinte e uns anos e tento sempre olhar para dentro de meu abismo, não para me jogar (que estupidez!), mas porque sou viciada em vertigem... Passo a maior parte do meu tempo na universidade, o que não significa que estou lá a maioria das vezes; tb volto para casa andando do centro, onde trabalho, todas as segundas, quartas e sábados, o que me faz feliz, porque posso ver coisas e pessoas o tempo todo sem me preocupar com o dia seguinte, creio ser esses os momentos menos tristes de minha semana.
Desde que percebi não estar morta, um dia, há muito, lá em Guarapari, amo. Não me importa nome, cor, tipo sanguíneo, opção sexual, faculdade... vejo o melhor da pessoa e amo aquele detalhe, por menor que seja, por inacreditado que tenha sido por seu senhor, por apagado/ desbotado/ engiado que tenha ficado depois do temporal... (afinal, quem é que consegue tirar toda roupa do varal, fechar todas as janelas e colocar os filhos para dentro sem se molhar, pelo menos um cadin??!!) Tenho alguns amigos verdadeiros, outros de ocasião, e outros de beijar na boca, mas todos me encantam e me fazem rir um bom bocado de tempo...
Mas, tem um que vou amar o resto da vida. Ele me olha nos olhos e me enfrenta para colher meu melhor; ele me faz rir de nervosa e acredita que não existe amor ("existem provas de amor, provas de amor apenas... não existe amor"); com ele comi alcaparras pela primeira vez, e não gostei, não; e vivemos bons momentos. Hoje, ele continua lindo s2 e eu me apaixonei, de novo, pelo carinha - do - outro - lado - da - rua, infelizmente, nossos clubinhos são rivais e, esse ano (2011), só o encontrei duas vezes, em fevereiro.O que me fez lembrar:

As coisas
Jorge Luis Borges

A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, os naipes e o tabuleiro.
Um livro e em suas páginas a seca
Violeta, monumento de uma tarde
Sem dúvida inesquecível e já esquecida,

O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso esquecimento;
Nunca saberão que nos fomos num momento.
***

Trecho de Italo Calvino, "Cidades Invisíveis"




Recém-chegado e ignorando completamente as línguas do Levante, Marco Polo não podia se exprimir de outra maneira senão com gestos, saltos, gritos de maravilha e de horror, latidos e vozes de animais, ou com objetos que ia extraindo dos alforjes: plumas de avestruz, zarabatanas e quartzos, que dispunha diante de si como peças de xadrez. Ao retornar das missões designadas por Kublai, o engenhoso estrangeiro improvisava pantomimas que o soberano precisava interpretar: uma cidade era assinalada pelo salto de um peixe que escapava do bico de um cormorão para cair numa rede, outra cidade por um homem nu que atravessava o fogo sem se queimar, uma terceira por um crânio que mordia entre os dentes verdes de mofo uma pérola alva e redonda. O Grande Khan decifrava os símbolos, porém a relação entre estes e os lugares visitados restava incerta: nunca sabia se Marco queria representar uma aventura ocorrida durante a viagem, uma façanha do fundador da cidade, a profecia de um astrólogo, um rébus ou uma charada para indicar um nome. Mas, fosse evidente ou obscuro, tudo o que Marco mostrava tinha o poder dos emblemas, que uma vez vistos não podem ser esquecidos ou confundidos. Na mente do Khan, o império correspondia a um deserto de dados lábeis e intercambiáveis, como grãos de areia que formavam, para cada cidade e província, as figuras evocadas pelos logogrifos do veneziano. 

Com o passar das estações e das missões diplomáticas, Marco adestrou-se na língua tártara e em muitos idiomas de nações e dialetos de tribos. As suas eram as narrativas mais precisas e minuciosas que o Grande Khan podia desejar, e não havia questão ou curiosidade à qual não respondessem. Contudo, cada notícia a respeito de um lugar trazia à mente do imperador o primeiro gesto ou objeto com o qual o lugar fora apresentado por Marco. O novo dado ganhava um sentido daquele emblema e ao mesmo tempo acrescentava um novo sentido ao emblema. O império, pensou Kublai, talvez não passe de um zodíaco de fantasmas da mente.

- Quando conhecer todos os emblemas - perguntou a Marco -, conseguirei possuir o meu império, finalmente?

E o veneziano:

- Não creio: nesse dia, Vossa Alteza será um emblema entre os emblemas.

Minha Vez


Agora é minha vez. Confesso que minha rotina de trabalhos, aulas e mais trabalho consomem meu tempo, dias e horas e meses aos poucos, quase não tenho tempo para ver os amigos próximos ou escrever para aqueles que não estão tão próximos assim.

Sei que deveria ter começa, mas acho legal não ter me esperado e tocado isso até o momento. Então vamos ao que interessa (eu acho).

Meu nome é Andre isso não mudou, ainda, tenho atualmente vinte e pouco anos e estou preste a me formar na faculdade, é, já se passou um bom tempo, três anos para ser mais exato. Tenho monografia, trabalhos e ainda por cima, muitos trabalhos da agência, ser publicitário não é aquela vida mansa, de glamour e curtição como muitos pensam. São noites más dormidas, finais de semanas perdidos, mas há pelo menos a gratificação de ver que aquilo que ralou muito deu certo e obteve o resultado esperado.

Já trabalhei em duas agências e com isso adquiri uma certa experiência e agora estou indo para a minha terceira agência, começo amanhã (25 de abril) para um novo trabalho, novos amigos e novos aprendizados. Por isso agora tenho um certo tempo para escrever sobre mim.

Neste meio tempo em que não estamos “juntos”, já dei os meus perdidos, já quebrei a cara, já fiquei com medo, mas também já fui corajoso. Já sorri e já chorei, já aprendi e também já ensinei também. Já me arrependi de ter feito algumas coisas, já me arrependi de não ter feito muitas outras.

Com tudo isso que já vivi, posso dizer que hoje sou mais homem do que menino e que o velho já passou e tudo se fez novo.

Este é um pouco do que sou, e agora, quem é você?

sábado, 23 de abril de 2011

Cartas a um jovem poeta

trecho:
"O amor de um ser humano por outro, é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós. É por isso que os seres bastante novos não sabem amar e precisam aprender."



quinta-feira, 21 de abril de 2011

Será????!!!

Legião Urbana
Composição : Dado Villa-Lobos / Renato Russo / Marcelo Bonfá

Tire suas mãos de mim!
Eu não pertenço a você.
Não é me dominando assim
Que você vai me entender.


Eu posso estar sozinho,
Mas eu sei muito bem aonde estou.

Você pode até duvidar.
Acho que isso não é amor.

Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

Nos perderemos entre monstros
Da nossa própria criação.
Serão noites inteiras,
Talvez por medo da escuridão.

Ficaremos acordados
Imaginando alguma solução.

Prá que esse nosso egoísmo?
Não destrua nosso coração.

Será só imaginação?
Será que nada vai acontecer?
Será que é tudo isso em vão?
Será que vamos conseguir vencer?

Brigar prá quê se é sem querer?
Quem é que vai nos proteger?
Será que vamos ter que responder
Pelos erros a mais, eu e você?



(pq eu tenho um amigo que não sabia que minha amizade era verdadeira e decidiu partir...) 

Poema 20

                                                                                 Pablo Neruda

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos.


El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Caio Fernando Abreu

Tenho trabalhado tanto, mas sempre penso em vc. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assenta e com mais força quando a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos…
Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você. Eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende?
Eu quis tanto ser a tua paz, quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.
Mas se você tivesse ficado, teria sido diferente?
Melhor interromper o processo em meio: quando se conhece o fim, quando se sabe que doerá muito mais — por que ir em frente?
Não há sentido: melhor escapar deixando uma lembrança qualquer, lenço esquecido numa gaveta, camisa jogada na cadeira, uma fotografia — qualquer coisa que depois de muito tempo a gente possa olhar e sorrir, mesmo sem saber por quê. Melhor do que não sobrar nada, e que esse nada seja áspero como um tempo perdido.

Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina.

Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas. Uma lembrança boa de você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.
Mesmo que a gente se perca, não importa. Que tenha se transformado em passado antes de virar futuro. Mas que seja bom o que vier, para você, para mim. Te escrevo, enfim, me ocorre agora, porque nem você nem eu somos descartáveis.
. . . E eu acho que é por isso que te escrevo, para cuidar de ti, para cuidar de mim – para não querer, violentamente não querer de maneira alguma ficar na sua memória, seu coração, sua cabeça, como uma sombra escura.

domingo, 17 de abril de 2011

Flor da Pele

                                                                                                                                            Zeca Baleiro

Ando tão à flor da pele
Qualquer beijo de novela
Me faz chorar

Ando tão à flor da pele
Que teu olhar "flor na janela"
Me faz morrer
Ando tão à flor da pele
Meu desejo se confunde
Com a vontade de não ser
Ando tão à flor da pele
Que a minha pele
Tem o fogo
Do juízo final...(2x)

Barco sem porto
Sem rumo, sem vela

Cavalo sem sela
Bicho solto
Um cão sem dono
Um menino, um bandido
Às vezes me preservo
Noutras, suicido!

Oh, sim!
Eu estou tão cansado
Mas não prá dizer
Que não acredito
Mais em você

Eu não preciso
De muito dinheiro
Graças a Deus!
Mas vou tomar
Aquele velho navio
Aquele velho navio!

sábado, 16 de abril de 2011

Esperança

Mário Quintana


Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
Atira-se
E
— ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
— O meu nome é
ES-PE-RAN-ÇA...


Texto extraído do livro "Nova Antologia Poética", Editora Globo - São Paulo, 1998, pág. 118.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Retrato, Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

terça-feira, 12 de abril de 2011

Acorrentados

Acorrentados

por Paulo Mendes Campos


Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Esperei demais

Bem, o combinado era: eu faço o design do blog e o André, a primeira postagem. Mas, ele anda ocupado demais, cansado demais, ou simplesmente esquecido demais... não tem problema... Inaugurado está o blog, então vamos começar!!!