sábado, 23 de dezembro de 2017

O nosso encontro começa nos sonhos

Estou num ônibus. Cara colada na janela fechada, é bom observar sem tocar (costumava te observar com a mão no bolso, tentativa de segurar o impulso maior). É noite, à medida que me aproximo da cidade, a expectativa aumenta, assim como as luzes, as ruas, os prédios. O centro da cidade, tão exótico e suas mediações tão comuns, diferenciam-se pelo formato e tamanho dos prédios. No centro, fruto da minha ânsia, os prédios se contorcem, caixas sobrepostas em "x", ou retorcidas por gigantes mãos invisíveis. Nas margens, lugar onde moram meus pais, prédios baixos, com luz pouca. Sinto doer o estômago, coloco a mão sobre minha barriga e algo me aterroriza. Não olho para baixo, não tateio. Respiro como dá e aviso minha mãe que estou chegando. Saio da rodoviária com uma mochila nas costas, entre abraços desencontrados e sorrisos murchos, chego na casa deles. Minha família: líderes de uma trupe de malformados, com um freakshow que me recusei a participar. Temo meu pai e a reação de todos quando me virem assim, vida feita em outro lugar. Alguns aparecem e me abraçam (sinto que queriam ter a força para fugir também), outros murmuram palavrões e jogam pragas. Uma revolta cresce e, quando dou por mim, estou com o dedo na cara de meu pai, berrando aos quatro ventos: "todos lá fora  acham linda a minha cintura fina, mas eu sei que minha deformidade - urso encurvado com cintura de corpete estreito ao máximo - só existe porque fui seu macaco de circo preso tantos anos pela cintura e você nunca afrouxou a corda nem deixou que alguém o fizesse! Se sou assim hoje, sempre olhando o chão ou as coisas à distância, é só porque a jaula era pequena demais para eu me esticar e não me coube espaço!" Agora entendo as dores, a sensação de usurpação da minha vida, mas a revolta não passa. Digo-lhe com mais calma que vim fazer um curso de trapezista no centro. Ele ri e aponta para a jaula, "é para ali que você vai voltar". O Trapezista da trupe vem entre cambalhotas e mortais, sentar-se no colo dele. Seu semblante muda, agora são olhos amorosos, uma voz suave que quase me nina à dormir. Eles riem, o trapezista sai e o caos retorna. O silêncio retumbante me lembra Diu, fico feliz por pensar nele nesse sonho. As paredes da casa estão cheias de frases como "a experiência da vida te leva à morte" ou "amor:..." - algo que não me atrevo a virar a esquina para continuar lendo. São várias plotagens em preto nessas paredes cinzas com luzes que vem de não sei onde e de todos os lugares. Quero que meus pais saibam de minha dor, mas ela parece não ter valor algum ali dentro, quero poder abraça-los sem me sentir estrangeira. Estou sentada de frente para meu pai, ambos em silêncio, ele sorri e diz que me atrasei para o curso, não serei mais aceita. Ele sorri e vejo Diu, ele fala e ouço sua voz, suas mãos não me tocam, mas sei que delas sairá o toque dele. A mágica desse sonho está na cidade vista de longe, na minha preocupação em escrever algo lindo que tocará Pilate, em não esquecer o que as frases diziam, em mencionar que Diu estava lá, em ser um urso de circo presa pela cintura a vida inteira até o momento da liberdade e eu estar neste momento. Percebo que, talvez, Diu seja a ferida cicatrizada sobre a qual temo pôr a mão, que dói às vezes, mas não vai voltar a sangrar. Foi bonito o sonho.