domingo, 26 de junho de 2011

Porque não como coração de galinha


Semelhante ao hábito de comermos coração de galinha, os gigantes comiam coração de humanos. Da mesma forma, eram petiscos deliciosos, se acompanhados por uma cerveja ou ice ou se devorados com arroz branco.  Para eles, assim como para nós, não importavam os sentimentos que pulsaram por algum tempo dentro desses coraçõeszinhos. Espera um pouco, mas o que é isso que digo? Seres humanos não podem ser comparados com essas galinhas brancas e gordas de granja, muito menos, com as magricelas criadas soltas no quintal, afinal, o que pulsa em nós é amor, carinho, solidariedade, compaixão ou, até mesmo, fidelidade. Não, não podia ter-nos comparado à elas, jamais. E assim pensavam os gigantes enquanto ainda éramos selvagens, "não podemos domesticá-los, olhem só: vivem em harmonia..." Mas o dia chegou em que houve guerras, e mortes, muitas mortes, e um queria ser melhor do que seu irmão. "Prenda-os!" Assim, pouco a pouco, deixamos de lutar contra as grades, as redes, os ferrolhos, os grilhões. Procriamos, morremos, cantamos, enfim, a vida agora era aquilo ali e já não mais se contavam estórias dos tempos de liberdade nem dos de dor. E de tanto que crescemos, submissos, fomos soltos nos quintais e já passeávamos pela casa, sem ofender aqueles que nos salvaram de nós mesmos. Até que um dia, por não haver o que comer, pegaram o primeiro de nós e, da carne imprestável, restou-lhes um coração delicioso, se servido como petisco ou se comido com arroz branco, no churrasco. Nosso destino finalmente revelado: servir à quem vence nossos corações cansados. Todos os dias, centenas se davam ao machado, ao fio de nilon, ao facão, à liberdade. E nossos filhos e netos aprenderam que nasciam para, um dia, serem servidos à mesa, um final glorioso e digno de quem mais comesse, mais crescesse, mais se atirasse na frente da navalha. Centenas, milhares... e continuávamos reproduzindo, procriando para um único fim: a boca gulosa do gigante que nos salvou de nós mesmos, um dia. Já não se amava mais, não se conhecia o pranto desesperado da mãe que perde o filho ou a gargalhada do pai que vê seu rebento pela primeira vez. Por não sermos mais humanos, mas galinhas criadas soltas na roça, atrofiamos o coração e a mente. Nascíamos e morríamos sem termos sentido medo, prazer, tristeza, mágoa. E quando por fim nosso peito se tornou oco, ficamos sem serventia e os olhares esfamiados se voltaram para as aves (avestruz, ema, garça...). Fomos expulsos das cozinhas, das árvores, dos sofás, daquilo que praticamnte já era considerado lar, para de onde viemos. Sem instinto, sem ajuda, mas principalmente, com um vazio dentro do peito. De volta ao ponto de partida, no início, vivíamos ainda como bicho de quintal, esperando a comida, esperando a morte. Com o passar do tempo, nos demos conta de nossa real condição de libertos e começamos, assim, a viver. Sobe em meu colo, atrapalhando-me a terminar essa lenda, em uma posição quase suicida, uma galinha. As criamos soltas pela casa, damos-lhes comida e, no cair do dia, arrancamos dezenas de coraçõeszinhos ainda pulsantes de seus corpos. Quais sonhos trariam? Nossos olhos gulosos não nos permitem tais reflexões.  

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Trecho I de O Encontro marcado, de Fernando Sabino



"Olhem: comunico-lhes, solenemente, que está fundado o terrorismo.
Base do novo movimento: preconizar e difundir o terror, de todas as maneiras, em todas as suas manifestações. O Terror nas Letras, cujo protótipo seria a novel 'Metamorfose', de Kafka.
 - Kafka era um terrorista. Incentivar todas as situações terroristas, estabelecer o pânico, lançar o terror.
- E a solução?- perguntou Mauro.
- A solução é a conduta católica- respondeu o amanuense Belmiro.
- A solução é o próprio problema, sabe como é? Não há solução. Imagino a seguinte cena: um congresso de sábios, os mais sábios do mundo, que se reuniram para resolver o problema dos problemas, o problema transcedental, o Problema, tout-court.
- O problema o quê?
- Tout-court. Vá à merda.
- Ah, tout-court. Merci.
- Pois bem: estáo reunidos, os sábios, a postos para começar a trabalhar, encontrar a solução do problema e o Presidente do Congresso dá por iniciada a sessão, anunciando que vai, enfim, dizer qual  é o Problema que os reuniu. Faz uma pausa, e declara solenemente: 'Meus senhores! O problema é o seguinte: Não há problema!'
- E daí?
- Daí os sábios terem de resolvero problema da inexistência do problema. É o terror.
- Confesso que não entendo.
- Vocês não entendem porque são burros: no nosso caso, é a mesma coisa. Só que há o problema, o que não há é a solução. Logo, está solucionado.
- E qual é o problema?
- O problema é o terror.
- Ah!
Calaram-se, os três, e riram, deslumbrados à ideia de que agora sim, setavam completamente doidos- os pais tinham razão.
- Es una cosa terrible, la inteligencia!
- Unamuno não era terrorista.
Dê três exemplos de situação terrorista.
- Um grito dentro da igreja, uma gargalhado no velório, um árabe no elevador.
- Muito brando. É o que se pode chamar, apenas, de 'terrorismo cor-de-rosa'. O verdadeiro terrorismo é o absurdo mais terrível, por exemplo: o do homem que se apaixona por um fio de cabelo da amada, e quer viver com ele, dormir com ele, ter filho com ele...
- É, meus amigos, o inevitável aconteceu.
- Bom lema para o terrorismo: O inevitável aconteceu! Se considerarmos o aconteceu, aí, como substantivo e não como verbo.
- Precisávamos é de uma coisa para símbolo.
- A coisa- prosseguiu Eduardo- A Coisa é o símbolo. Ninguém sabe o que é. Está em toda parte e não está em lugar nenhum. Assume todas as formas. Pode ser um sentimento, um objeto, uma cor- só tem que ser coisa, isto é: um substantivo. Por isso concluímos, há pouco, que aconteceu nçao era verbo. Onde a Coisa estiver, aí estará o terror.
Os outros ouviam, um tanto apreensivos. Eduardo falava sem parar:
- Me lembrei de uma coisa inventada por Salvador Dali- a Coisa era um pão. Sairia no jornal como manchete assim: 'O Inevitável Aconteceu- A Descoberta do Pão.' Um pãp monumental exatamente igual a um pão francês comum. A diferença estaria no tamanho: mediria dois metros de comprimento. O pão era encontrado na rua, levariam para a polícia. Estará envenenado? Conterá explosivo? Propaganda política? Os comunistas, o pão-para-todos? Anúncio de padaria? Os jornais comentavam e discutiam o que fazer do pão. Era só o assunto ir esfriando, e um pão maior ainda, de cinco metros, amanheceria atravessado no viaduto. Toda a cidade empolgada com o mistério, a polícia desorientada, o pão analisado nos laboratórios. Econtinuava o problema: o que fazer com ele? Para despistar, um  de nós escreveria um artigo sugerindo que fosse cortado em milhares de pedaços e doado à Casa do Pequeno Jornaleiro. No Rio, em São Paulo, Recife, Porto Alegre começavam a aparecer pães, cada vez maiores, nos lugares públicos. Eram membros de uma sociedade secreta já fundada, a Sociedade do Pão, que começava a trabalhar. E um dia surgiria outro pão gigantesco em Roma, outro em Londres, outro em Nova Iorque. A humanidade deixaria de se preocupar com seus problemas, as guerras seriam esquecidas, até que se resolvessem o mistério do pão. Era a vitória pelo Terror.
- Você já penso no tamanho do forno para assar esse pão?
- Isso não é problema para nós: a ideia é de Salvador Dali, que aliás, é um vigarista.
- É uma besta.
- Falso terrorista
- Abaixo Dali!"

(trecho retirado de O Encontro Marcado, cap.A Geração Espontânea, p. 67-69, 45ª ed 1984)

De uma carta de Hélio Pellegrino à Fernando Sabino

"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas próprias mãos, sevindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."

sentados: Fernando Sabino e Otto Lara Rezende; em pé: Hélio Pellegrino e Paulo Mendes Campos  

Trecho de O Continente, de Érico Veríssimo

"Diante daquele túmulo, naquela manhã de princípios de novembro, achavam-se Pedro Terra, sua mulher Arminda e Bibiana, a filha co casal. De chapeu na mão, os cabelos grisalhos esvoaçando à brisa, Pedro olhava para a cruz e lembrava-se dum dia - havia muitos anos - em que tinham vindo enterrar naquele mesmo cemitério um dos habitantes do povoado que morrera com os intestinos furados pelas guampas dum touro bravo. Por sinal, o enterro fora numa tarde de soalheira medonha, e os homens que carregaram o caixão a pulso tinham as roupas ensopadas de suor. Ana Terra fizera questão de ir ao cemitério, apesar do mormaço, e Pedro, que conhecia a teimosia da mãe, sabia que era inútil contrariá-la. Ficara a velha à sombra dum cedro, no centro do cemitério, apoiada no braço do filho, e no momento em que baixaram o caixão à cova, ela murmurou:
- Meu pai e meu irmão foram enterrados no alto duma coxilha- mostrou-lhe as mãos murchas- Eu mesma enterrei os dois com estas mãos que a terra um dia há de comer... esta terra. - E apontava para o chão vermelho. - Quero ser enterrada aqui, meu filho, aqui debaixo deste cedro.
A terra cai sobre o caixão com um som cavo, quase musical.
- Não quero que ninguém chore- continuava a velha.- Não é preciso costurarem nenhuma mortalha para mim. Qualquer vestido serve. Mas quero que vosmecê prometa que  ninguém vai ver a minha cara no velório. Promete?
- Não diga essas coisas, mamãe- repreendia-a Pedro. Mas ela apertava o braço do filho, sacudia a cabeça completamente branca, sorrindo um sorriso em que a boca desdentada sugava os lábios, fazendo-os dobrarem-se sobre as gengivas.
-Promete?- insistia ela.- Promete?
Ele não teve outro remédio senão sacudir a cabeça e dizer "Prometo".
 - Está bem, meu filho. Eu também prometo uma coisa. Prometo nunca mais voltar depois de morta para trabalhar na roca, como minha mãe fazia.- Fez uma pausa, olhou fixamente para a cova e depois disse, rindo o seu riso guinchado: - Mas o hábito tem muita força. O melhor mesmo é você também enterrar a roca junto comigo. Assim eu livro a Bibiana da sina de trabalhar nela.
Agora Pedro olhava para a cruz e pensava nessas coisas. Pensava também na vida trabalhosa e triste que a mãe sempre levara e, erguendo os olhos para Bibiana, ficou a contemplá-la com uma mistura de carinho e pena. Que destino estaria reservado para aquela criaturinha de Deus? 

(Trecho extraído de "um certo capitão Rodrigo", 1997, p. 26 e 27) 

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Maroon 5, She will be loved


Cantaram para mim essa música há algum tempo, dentro de um carro... Eram bons aqueles tempos e não soube aproveitá-los.