segunda-feira, 13 de junho de 2011

Trecho de O Continente, de Érico Veríssimo

"Diante daquele túmulo, naquela manhã de princípios de novembro, achavam-se Pedro Terra, sua mulher Arminda e Bibiana, a filha co casal. De chapeu na mão, os cabelos grisalhos esvoaçando à brisa, Pedro olhava para a cruz e lembrava-se dum dia - havia muitos anos - em que tinham vindo enterrar naquele mesmo cemitério um dos habitantes do povoado que morrera com os intestinos furados pelas guampas dum touro bravo. Por sinal, o enterro fora numa tarde de soalheira medonha, e os homens que carregaram o caixão a pulso tinham as roupas ensopadas de suor. Ana Terra fizera questão de ir ao cemitério, apesar do mormaço, e Pedro, que conhecia a teimosia da mãe, sabia que era inútil contrariá-la. Ficara a velha à sombra dum cedro, no centro do cemitério, apoiada no braço do filho, e no momento em que baixaram o caixão à cova, ela murmurou:
- Meu pai e meu irmão foram enterrados no alto duma coxilha- mostrou-lhe as mãos murchas- Eu mesma enterrei os dois com estas mãos que a terra um dia há de comer... esta terra. - E apontava para o chão vermelho. - Quero ser enterrada aqui, meu filho, aqui debaixo deste cedro.
A terra cai sobre o caixão com um som cavo, quase musical.
- Não quero que ninguém chore- continuava a velha.- Não é preciso costurarem nenhuma mortalha para mim. Qualquer vestido serve. Mas quero que vosmecê prometa que  ninguém vai ver a minha cara no velório. Promete?
- Não diga essas coisas, mamãe- repreendia-a Pedro. Mas ela apertava o braço do filho, sacudia a cabeça completamente branca, sorrindo um sorriso em que a boca desdentada sugava os lábios, fazendo-os dobrarem-se sobre as gengivas.
-Promete?- insistia ela.- Promete?
Ele não teve outro remédio senão sacudir a cabeça e dizer "Prometo".
 - Está bem, meu filho. Eu também prometo uma coisa. Prometo nunca mais voltar depois de morta para trabalhar na roca, como minha mãe fazia.- Fez uma pausa, olhou fixamente para a cova e depois disse, rindo o seu riso guinchado: - Mas o hábito tem muita força. O melhor mesmo é você também enterrar a roca junto comigo. Assim eu livro a Bibiana da sina de trabalhar nela.
Agora Pedro olhava para a cruz e pensava nessas coisas. Pensava também na vida trabalhosa e triste que a mãe sempre levara e, erguendo os olhos para Bibiana, ficou a contemplá-la com uma mistura de carinho e pena. Que destino estaria reservado para aquela criaturinha de Deus? 

(Trecho extraído de "um certo capitão Rodrigo", 1997, p. 26 e 27) 

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