Semelhante ao hábito de comermos coração de galinha, os gigantes comiam coração de humanos. Da mesma forma, eram petiscos deliciosos, se acompanhados por uma cerveja ou ice ou se devorados com arroz branco. Para eles, assim como para nós, não importavam os sentimentos que pulsaram por algum tempo dentro desses coraçõeszinhos. Espera um pouco, mas o que é isso que digo? Seres humanos não podem ser comparados com essas galinhas brancas e gordas de granja, muito menos, com as magricelas criadas soltas no quintal, afinal, o que pulsa em nós é amor, carinho, solidariedade, compaixão ou, até mesmo, fidelidade. Não, não podia ter-nos comparado à elas, jamais. E assim pensavam os gigantes enquanto ainda éramos selvagens, "não podemos domesticá-los, olhem só: vivem em harmonia..." Mas o dia chegou em que houve guerras, e mortes, muitas mortes, e um queria ser melhor do que seu irmão. "Prenda-os!" Assim, pouco a pouco, deixamos de lutar contra as grades, as redes, os ferrolhos, os grilhões. Procriamos, morremos, cantamos, enfim, a vida agora era aquilo ali e já não mais se contavam estórias dos tempos de liberdade nem dos de dor. E de tanto que crescemos, submissos, fomos soltos nos quintais e já passeávamos pela casa, sem ofender aqueles que nos salvaram de nós mesmos. Até que um dia, por não haver o que comer, pegaram o primeiro de nós e, da carne imprestável, restou-lhes um coração delicioso, se servido como petisco ou se comido com arroz branco, no churrasco. Nosso destino finalmente revelado: servir à quem vence nossos corações cansados. Todos os dias, centenas se davam ao machado, ao fio de nilon, ao facão, à liberdade. E nossos filhos e netos aprenderam que nasciam para, um dia, serem servidos à mesa, um final glorioso e digno de quem mais comesse, mais crescesse, mais se atirasse na frente da navalha. Centenas, milhares... e continuávamos reproduzindo, procriando para um único fim: a boca gulosa do gigante que nos salvou de nós mesmos, um dia. Já não se amava mais, não se conhecia o pranto desesperado da mãe que perde o filho ou a gargalhada do pai que vê seu rebento pela primeira vez. Por não sermos mais humanos, mas galinhas criadas soltas na roça, atrofiamos o coração e a mente. Nascíamos e morríamos sem termos sentido medo, prazer, tristeza, mágoa. E quando por fim nosso peito se tornou oco, ficamos sem serventia e os olhares esfamiados se voltaram para as aves (avestruz, ema, garça...). Fomos expulsos das cozinhas, das árvores, dos sofás, daquilo que praticamnte já era considerado lar, para de onde viemos. Sem instinto, sem ajuda, mas principalmente, com um vazio dentro do peito. De volta ao ponto de partida, no início, vivíamos ainda como bicho de quintal, esperando a comida, esperando a morte. Com o passar do tempo, nos demos conta de nossa real condição de libertos e começamos, assim, a viver. Sobe em meu colo, atrapalhando-me a terminar essa lenda, em uma posição quase suicida, uma galinha. As criamos soltas pela casa, damos-lhes comida e, no cair do dia, arrancamos dezenas de coraçõeszinhos ainda pulsantes de seus corpos. Quais sonhos trariam? Nossos olhos gulosos não nos permitem tais reflexões.
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