terça-feira, 3 de maio de 2011

No Dia em que Ele foi Embora, Chana de Moura


Recordo-me claramente daquela madrugada. Eu já não pegava no sono há duas noites, pouco dormia desde que descobrira o seu segredo. O que viria depois? Levantou-se lentamente, calçou as botas sem preocupar-se em recolher os pertences espalhados pela casa. Percebi que tentou ousar um sutil e carinhoso toque em meu corpo. Em um seguinte gesto de mero carinho, cobriu-me com a coberta. Sua redenção. Eu carregava a certeza de que não estava partindo por não mais me desejar. Porém, nem toda certeza conforta o coração da gente. Abriu a porta lentamente e por ali nunca mais voltou. Nunca mais o vi. Nunca mais nos veríamos. Nunca mais nos vimos. Nunca mais. Nunca. Permaneci em silêncio sôfrego presenciando a cena diante da escuridão do quarto. Quando percebi sua distância, levantei e caminhei até a janela, observei friamente seu vulto atravessar a rua lá embaixo, dotado de uma pressa incomum, a pressa de se ir para lugar algum. Para se ir embora de si mesmo, era uma fuga. Não cedi. Não cedi a ele, nem cedi à decepção, nem cedi à eu mesma, enlouquecendo por dentro. Notei uma carta em cima de seu travesseiro ainda aquecido por seu corpo quente, nenhuma dor ou rancor havia em meu peito. Sem entender ao certo e sem apresentar resistência ao acontecido, abri e iniciei a leitura daquele bilhete escrito a seu próprio punho. A carta não indicava o destinatário e nem, sequer, o remetente, poderia ser endereçada à qualquer pessoa. Porém, era endereçada, eu sabia, a mim. E havia sido escrito através de suas mãos, através das mãos que eu ainda posso recordar. Ele escreveu:

"Eu gosto de você. Meus 850 anos passaram a possuir algum resquício de sentido desde o momento em que dirigi a palavra a você pela primeira vez. Porque eu gostei de você desde aquele dia, desde o sempre, desde o nosso sempre. Gosto de você e das suas mentiras. Na realidade, não sei ao certo se aprecio mais aquilo que você forja ser ou sua devoção ao parecer ser este outro alguém. Você é meu camaleão de rebeldia conformada a tombar somente impérios já massacrados. Você. Gosto da sua fúria contida entre um beijo e um abraço e entre a sua própria vontade. Gosto desse seu circo onde não há alegria de palhaços, desse seu carnaval sem lantejoulas e samba, e gosto de a ver quando dança sozinha na sala, pensando que não a estou observando, ao som de música alguma. Seu dançar é um poema, meu amor. Mas meu gostar é gélido.

Você possuí um bocado de sonhos possíveis, mas, ao menos, ainda sabe como sonhar. Seu desejo maior é jamais parar de sonhar. Eu a conheço, um pouco.

Me convoca a imaginar. Você nasceu somente metade. Uma metade nascida para que eu pudesse a completar. E a transbordar. Sua loucura é tão calculada, e seu passo é quase sempre errôneo. Você nem tem tanta força nem tanta alegria, mas você é aquilo que nasceu para ser. E com tamanha coragem, o é. Eu nasci para ser, mas jamais batalhei em meu nome. Jamais me olhei perante um espelho. Desisti. Como fiz inúmeras vezes antes, desisti. Desisti imaginando que o coração se acalmaria aos poucos, com o passar dos séculos.

Quando o tempo se fez negro, você, que é fraca, alcançou a luz. Quando despenquei ao fundo de um poço, eu, que sou forte, cruzei os braços e, solitário, chorei.

Gosto porque você não é e nunca será uma rainha, uma condessa ou uma nobre dama da sociedade. Eu gosto de você pois é, entre tantas, a mais mulher de todas. A única que capaz de em mim chegar. Gosto de você por cada um de seus encantadores defeitos que, de tanto amor, eu transformei em qualidades.

Gosto de você tanto quanto é preciso gostar para o poder chamar "amor". Eu amo você tanto quanto se pode amar alguém que não a gente mesmo, e espero que isso baste para você me entender agora.

Você está acordada ao meu lado neste exato momento, fingindo dormir. Olhos arregalados percorrendo cada centímetro desta parede vazia. Está terrivelmente assustada. Eu estou mais. Posso te ver, meu amor. A parede não responderá suas perguntas, as nossas perguntas. Tampouco eu. Tampouco você. Tampouco vida porque esta ditadora dispensa a explicação. Devemos aprender por nós mesmos.

Gosto do jeito com o qual me olha, como se fosse eu todo o mistério sagrado contido em seu infanto olhar. Não há nada de novo em mim, a não ser você que será sempre meu futuro e meu passado de agora em diante.

Por quê? — Eu pergunto. Por quê? — Você pergunta.

Os homens são sempre covardes, agora chegou a minha vez. Por isso, vou partir.

A vida agraciou-me com a força de poder suportar a eternidade de uma vida, mas não concedeu-me a força de suportar a perda de um amor.

Eu não sei. Você não sabe. Nós não sabemos. Nunca saberemos."




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