sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O que percebo, ainda que míope

Percebo as poucas coisas ao meu redor, que ainda me dão paz. Ao ir para o trabalho, percebo que o escuro do céu ressalta o verde claro dos bambus. Lembro-me sempre da sua mensagem SMS a dizer "eu indo trabalhar e você nem sonhando em acordar" (acho que foi a partir desse momento que te amei e soube que você seria minha perdição - não estava errada, no fim das contas). O Cruzeiro do Sul me faz sonhar, mesmo que pelos poucos segundos até a portaria, com sobrevivência na selva, piratas com seus astrolábios e minha adolescência em Ilhéus. Percebo também, com certa tristeza que não vejo mais o sol nascer em companhia de amigos queridos e que há tempos não tomo batida de morango ou maracujá. Ao seguir a rua, encolhida no casaco verde, pedindo ao universo para não ser assaltada, vejo as rachaduras da calçada. Em uma delas, uma flor nasceu, morreu e agora só resta a lembrança que me faz sorrir. Chego no ponto de ônibus com cinco minutos de antecedência, tempo de colocar os fones, pegar o cartão e me certificar que, durante o expediente, não chorarei (deixo escorrer duas ou três lágrimas sinceras antes de dar sinal). Em pé, percebo que, mesmo a playlist sendo a mesma, em certas músicas, me perco em pensamentos e nunca decoro a letra. Há outras músicas que me fazem sofrer de saudade. Já não escuto mais Rodrigo Amarante, mas Cícero ainda grita em meus fones "não se esqueça de esquecer alguma coisa pela casa e vir buscar do nada" e viajo em seus olhos fixos em mim, no calor das suas mãos na minha ao me ensinar a tocar a bacia budista. "A velha vila velha e vida amarela" me lembram que um domingo com a mesa cheia de netos também é uma prisão, me contento em matar anjos e, depois de morta, ser chamada de "a puta mais velha da cidade" (terei amado José Arcádio ou Aureliano, sendo eu Pilar Ternera?). Sempre desço do ônibus quando Renato desafina "bye, bye-bye, Johnny. Johnny, bye-bye. Bye-bye, Johnny". Entre o ponto e minha sala, vejo árvores em tons diversos de verde, marrom e cinza. Minha sapatilha manchada de roxo revela uma predileção por pisar bem em cima do jamelão maduro que encontro no chão. Às vezes, tem sabiá, mas sempre pombos. Entre uma faixa de pedestre e outra, dou bom dia ao porteiro do prédio em frente e penso duas vezes antes do próximo passo. Estou cansada antes mesmo de entrar no estacionamento. Um dos pés dentro e coloco minha máscara encardida, tiro os fones, respiro fundo e levanto o olhar. Não posso mais voltar. Até às 19:00, serei apenas beijos, abraços e broncas. Do portão para dentro, ninguém sabe de minhas paixões ou sonhos mais secretos, não ouso pensar neles por medo de contaminação. Sou Outra, sorrio Outra, respiro Outra. Dentro dos portões, te deixo do lado de fora, com alívio. Entre um mantra e outro, desejo que, ao ir embora, eu seja tão Outra, mas tão tão Outra, que você não me faça falta e eu te deixe lá. Nunca me transformei tanto. Você volta comigo, no mesmo trajeto, com o final da playlist. No cemitério, já não há mais Fressato e seus tan-tanto amor ou "volte logo por favor, que a sua casa ainda está aqui". Me pego olhando para fora da janela. Você nunca estará no carro ao lado ou me verá passar na frente da Pindorama. Percebo que meu dia foi triste, há quase um ano já, em abril fará um ano sem você a fuder com a minha cabeça. Mil lembranças, os mantras para proteger minha alma, frases que se repetem, medos e sonhos. Seus olhares de reprovação, de decepção ou de revolta sempre me fazem lembrar o porquê é bom não te ter mais nos meus dias (como se eu não dormisse nem acordasse por sua causa, ainda hoje). Atravesso a pista no escuro depois da jornada cumprida. Dou boa noite ao porteiro que vigia minha casa. Enquanto ando no bambuzal, retiro a máscara. Respiro aliviada. Não morri. Não hoje. Subo no elevador procurando a chave, quase não querendo encontrá-la, só pelo motivo de chorar tudo o que não deixo sair do peito. Chaves na mão, luzes de casa apagadas, carne congelada e a certeza de que não nasci para morar sozinha. O nó na garganta aperta. Tiro a roupa na cozinha, acendo o cigarro, vou para a varanda, olho em volta à procura de algo que me excite, me deixe viva, pelo menos até a hora de dormir. Belisco qualquer coisa da geladeira. Um vício por semana, se hoje fumo, só semana que vem posso beber, assim, penso duas vezes antes do vício escolhido. Tomo um banho, escovo os dentes. Deito na cama, penso em você e percebo o calor da sua pele emanando da minha. Fecho os olhos para não chorar (já estive neste lugar, já chorei até o dia clarear e a saudade não passou, então não choro mais), repito "sou forte, independente, o silêncio dele deixa claro o lugar que ele quer ocupar na minha vida", mas antes de terminar o mantra, vejo os seus olhos fixos no meu, sinto o calor das suas mãos, ouço você cantando "e no meio de tanta gente eu encontrei você" e sorrio triste. Durmo. "Amanhã recomeço". Percebo que aprendi com as moças dos filmes proibidos a fingir, a esquivar da dor e a tomar pela força o que desejo. Sinto nojo, empatia e certeza de que me torno mais parecida com elas a cada dia. O meu "self-harm" está tão constante que deixei apagar a luz de quem sou. O céu azul contra as árvores verdes me dão dicas de que habito ali, mas a pressa nos passos e a respiração acelerada me permitem ver, e não viver. Sinto muito, mas você ainda será assunto de vários outros posts. Por fim, percebo que meus cacos foram colados com o ouro da sua presença e que eu-inteira só existe porque as suas músicas, livros, opiniões, humor e ser viraram massa de unificar. Não digo seu amor, nunca o direi, mas você inteiro me fez inteira. Por isso, é impossivel eu me olhar e não ver seus olhos encarando de volta ou minha mente não ter a sua voz, o que é triste, já que o seu ser não está mais presente. Eu te agradeço a paciência tibetana e a dedicação minuciosa, mas dói. Cada sopro é uma nova rachadura. Me sinto culpada ao ler Clarice ("você tem cara dessas meninas que lêem Clarice e acham que sabem tudo do mundo"). Está na hora de eu me partir novamente em mil? Já não há corda, nem mão para segura-la, mas não posso simplesmente caminhar. O que farei com os sete anos imóvel? O que ser? Como guardarei seu ouro tão amavelmente cedido (ou cindido?). Me exaspero. Queria ir-me embora pra Pasárgada, pois lá sou amiga do rei, terei a mulher que quero, na cama que escolherei. Mas isso seria uma rima e não uma solução.
Obrigada pelos peixes!

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