terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A Heloisa Medeiros, de Graciliano Ramos

Heloisa
chegaram-me as duas linhas e meia que me escreveste. Pareceram-me feitas por uma senhora muito séria, muito séria!, muito antiga, muito devota, dessas que deitam água-benta na tinta.
Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto desejo de começar esta carta assim: 'Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar a V. Exa., etc.' Onze palavras! Imaginas o que um indivíduo experimenta ao receber onze palavras frias da criatura que lhe tira o sono? Não imaginas. E sabes o que vem a ser isto de passar horas da noite acordado, sonhando coisas absurdas? Não sabes. Pois eu te conto.
Sento-me à banca, levado por um velho hábito, olho com rancor uma folha de papel, que teima em conservar-se branca, penso que o Natal é uma festa deliciosa. Os bazares, a delegacia de polícia, a procissão da Nossa Senhora do Amparo... E depois o jogo dos disparates, exelente jogo. 'Iaiá caiu no poço'. Ora o poço! Quem caiu no poço fui eu.
Principio uma carta que deveria ter sido escrita há três meses, não posso concluí-la. Fumo cigarros sem conta, olhando um livro aberto, que não leio. Dança-me na cabeça uma chusma de ideias desencontradas. Entre elas, tenaz, surge a lembrança de uma criaturinha a uem eu disse aqui em casa, depois da prisão o vigário, nem sei ue tolices.
Apaga-se a luz, deito-me. O sono anda longe. Que vieste fazer em Palmeira? Por que não te deixaste ficar onde estavas?
Não consigo dormir. O nordeste, lá fora, varre os telhados. Na escuridão vejo indistintamente essa mancha que tens no olho direito e penso em certa conversa de cinco minutos, à janela do reverendo. Por que me falaste daquela forma? Desejei que o teto caísse e nos matasse a todos.
Andei criando fantasmas. Vi dentro de mim outra muito diferente da que encontrei nauele dia.
Por que me quiseste? Deram-te conselhos? Por que apareceste mudada em vinte e quatro horas? Eu te procurei porque endoideci por tua causaquando te vi pela primeira vez.
É necessário que isto acabe logo. Tenho raiva de ti, meu amor.
Fui visitar o padre Macedo. Falou-me de ti, mas o que disse foi vago, confuso, diante de dez pessoas. É triste que, para ter notícias tuas, minha filha, eu as ouça em público. Foram minhas irmãs que me disseram o dia de teu aniversário e me deram teu endereço.
Tinhas razão quando afirmaste que entre nós não havia nada. Muito me fazes sofrer.
É preciso que tenhas confiança em mim, que me escrevas cartas extensas, que me abras largamente as portas da tua alma.
Beijo-te as mãos, meu amor.
Recomendo-me aos teus, com especialidade a dona Lili, que vai ser minha sogra, diz a ela. Acho-a boa demais para sogra.
Amo-te muito. Espero que venhas a gostar de mim um pouco. Teu Graciliano. Palmeira, 16 de janeiro de 1928.


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