quinta-feira, 28 de julho de 2011

Vês, amiga, se não é Dom Quixote de la Mancha!

à minha querida Guinha

Vês, amiga, logo ali, se não é Dom Quixote de la Mancha a galopar imponente pelas ruas engarrafadas da cidade! Eu o vejo com os olhos marejados e ainda encharcados de sono; nesta triste manhã de julho, debruçado na janela, o sol desponta com uma pungente promessa de esperança: lá está o bravíssimo cavaleiro, acompanhado pelo seu fiel escudeiro Sancho Pança, trazendo às pessoas desiludidas da cidade palavras de boa-venturança, saudando às coisas da natureza, saudando o sol, a lua, os desertos, as estrelas, o ditoso céu, a ditosa idade, os imensos caminhos que se abrem ante vossos olhos, abençoados pela boa aurora!
E eu vejo você amiga, o seu mundo, suas coisas, suas fastidiosas obrigações cotidianas, seus estudos, sua vida enclausurada entre muros mal rebocados e letreiros comerciais de péssimo gosto; você lamenta não ter uma janela voltada para o sol, queria vê-lo nascer; mas se contenta quando é chegada a hora de crepúsculo e teus olhos fitam um sol pousando entre fios, antenas e casinhas térreas. É nessa hora que tua áspera cidade, de cores tão cruas, ganha uma tonalidade rósea e o céu inteiro parece se tingir com cores de uma melancólica despedida...

E você me pergunta numa carta: "... eu tenho uma casa, uma mamãe, comida na mesa... como posso me sentir infeliz?"
E você tem os olhos voltados para o crepúsculo... Nessas horas o seu mundo, tantas vezes sem sentido, parece ficar pequenino, doce, espiritual, e te convida à deliciosas viagens sobre um cavalo amigo... É possível vê-lo, ali, amplo cavalo selvagem galopando sobre nuvens encharcadas de luz. Ele galopa, galopa, sobre ele um cavaleiro... é Dom Quixote de la Mancha - Eu o vejo, amiga, ali, logo ali, o cavaleiro; será acaso você a triste donzela? ele te salvará? depressa cavaleiro! depressa! ele vem vindo em nossa direção, galopando furiosamente sobre as nuvens, elas se retorcem, se deformam, cercam o cavaleiro de moinhos, são seis, sete, oito... Serão dez? Não! Doze Moinhos de Vento!
O sol vertiginosamente desponta ao longe, mergulha atrás das casas, parece sugar consigo seus últimos despojos de luz, recolhe as últimas tintas que ficaram sobre os telhados, mas seus últimos despojos ainda iluminam cavalo e cavaleiro; eles se contorcem furiosamente por entre os moinhos, e todas as coisas se confundem, o cavaleiro saca sua lança, o silêncio da batalha é apavorante, o cavaleiro tomba; caem, cavalo e cavaleiro; cavalo e cavaleiro se dissipam; resistem os moinhos de vento...

E como uma metáfora da triste condição humana, todos os seus sonhos parecem tombar sobre as nuvens, sem produzir o menor ruído, desabam; e então amiga, tua esperança maltratada, cicatrizada pelas batalhas, pelas paredes mal rebocadas, tão cansada de esperar pela ditosa idade, pelos ditosos séculos professados pelo cavaleiro, descansa, silenciosamente tua esperança descansa, quando a noite vem e a lua dorme sobre as casas...


Por Alex Canuto em http://www.recantodasletras.com.br/autor.php?id=29784

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